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RELICÁRIO

Pedro Liñares at Kubik Gallery, Porto

[EN]

Um raio de sol incide por detrás da cortina e revela os grãos de poeira e pólen que pairam no ar. As partículas suspensas e cintilantes provocam um efeito mágico, próximo ao espiritual, transmitindo uma espécie de presença divina, como um Bom presságio [1] que se anuncia à primeira luz da manhã. Os raios crepusculares ou raios de Deus - como são conhecidos estes fenômenos quando ocorrem em meio à natureza - ainda que observados no cotidiano, possuem um aspecto extraordinário, celeste, capaz de atribuir uma qualidade preciosa a um momento, um lugar, um objeto.

 

Relicário é a primeira exposição individual de Pedro Liñares em Portugal e faz referência a uma coleção de imagens e objetos que, diante de vestígios de emoções, histórias e experiências compartilhadas, tornam-se pequenos amuletos e símbolos de proteção. Um ar tão místico quanto nostálgico transparece das pinturas. Envolvidas por uma espécie de neblina ou aura elas constelam uma rede de relações invisíveis [2], são como atalhos para cenas esquecidas e Sonhos jamais sonhados [3]. A poeira do tempo pousa sobre a memória, uma vibração turva e ao mesmo tempo profunda embaralha a percepção. Navegamos entre palavras indecifráveis e motivos escondidos, fundo e forma confundem-se à medida em que elementos são revelados por trás das camadas de tinta e escavações traçam pequenas aberturas por onde a luz sutilmente atravessa.

(...) quanto mais velhos são os objetos, mais nos aproximam de uma era anterior, da divindade, da natureza, dos conhecimentos primitivos, etc [4] .

As cores opacas, a luz difusa e as camadas desgastadas pelo gesto arqueológico, que faz surgir as imagens do fundo da pintura, manifestam o interesse do artista pelo que é raro e antigo. Remetem aos afrescos que cobrem as capelas com narrativas mitológicas, ou às cenas cotidianas encontradas nas paredes das casas em Pompeia sob as cinzas do Vesúvio. O método de Liñares passa pelo desenvolvimento de múltiplos estudos, que depois são transferidos para a tela. Por adição, acumulação e subtração estende-se o seu processo, até que a imagem original se transforme completamente, tornando a própria pintura um receptáculo das sensações vividas, capturando sons, aromas e impressões destes pequenos acontecimentos. Lembranças por vezes mais densas, outras mais diluídas.

 

A preciosidade dessas interpretações vem da ligação íntima e emocional com a sua origem e é incorporada pela experiência individual e subjetiva do artista, seja um regalo, um encontro ou um postal apropriado. Em Relicário, todo objeto é um objeto mágico [5]. Entre rótulos, flores secas e livros - assuntos que pontuam a obra de Liñares - nesta exposição destaca-se a presença do tapete. Em detalhe ou como pano de fundo, constroi paisagens ao mesmo tempo lúdicas e transcendentes. Tal qual o tapete voador das Mil e uma noites, viajamos para terras distantes através desta série de pinturas que revelam um tempo suspenso, entre o momentâneo e o eterno.

[1] Pedro Liñares (2024).

[2] Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[3] Pedro Liñares (2024).

[4] Baudrillard, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2019.

[5] Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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